Estudante de Medicina da PUC Londrina, Fernando Arfux Maluf é o autor do artigo sobre a importância (e relevante contribuição) da leitura não científica ao longo da graduação. Para ele, “a leitura, seja correlata a temas acadêmico, obras clássicas ou contemporâneas, em publicação impressa, eletrônica ou em qualquer mídia, é atividade que fortalece a habilidade do aprender”. Leia o artigo publicado originalmente no Jornal AML, edição março 2021,
O aprender do estudante de Medicina na era da informação: dos livros clássicos aos podcasts
- Por Fernando Arfux Maluf
“Inegavelmente, o presente nos presenteou com a maior disponibilidade de informações da história. Com a ascensão dos mais diversos veículos de comunicação, é cada vez mais diversificado o arsenal das formas de adquirir conhecimento, e o tipo de conhecimento a que se deve dedicar a adquirir dentro e fora do saber médico. Qual o espaço das formas tradicionais e das mais modernas de aprender no cotidiano de quem pretende ser um médico melhor?
Um dos tópicos mais comentados, quando se discute as peculiaridades dos atributos de nossa era, é a mudança no que é exigido do aprendiz dos dias de hoje – o que se projeta também para os aprendizes do futuro. Trata-se da ideia de que o conhecimento passou a abdicar de parte do seu protagonismo para dar espaço à habilidade de adquirir conhecimento. Em resumo: a eficiência em aprender, em encontrar a evidência que se busca, tem sido cada vez mais apreciada, no lugar do conhecimento absoluto já adquirido. No caso da prática médica, isso é uma tendência natural pela velocidade de atualização de condutas, e pela incerteza intrínseca ao exercício da Medicina. A cada dia novos artigos são publicados, com qualidades de evidência diferentes, e provocando reflexões sobre as práticas em vigor. A qualidade da prática médica depende cada vez mais da eficiência com que as evidências são encontradas e da interpretação apropriada de sua qualidade. Trata-se de uma forma de aprender que deve ser desenvolvida e aprimorada.
Uma ferramenta que só tem crescido entre os que buscam aprender de forma eficiente, é a aprendizagem por meio de podcasts. Os podcasts de Medicina são cada vez mais comuns, completos e informativos. Atualmente, o New England Journal of Medicine possui seu próprio podcast, onde divulga semanalmente os principais artigos publicados no jornal. Há uma série sobre raciocínio baseado em evidências do JAMA muito enriquecedora, um podcast da Nature, do British Medical Journal, e o sensacional Tá de Clinicagem, que também discute temas de Clínica Médica por uma abordagem baseada em evidências. Faz toda a diferença para a fixação de um conceito, troca de experiências, e verificação da aplicação prática, ouvir um assunto na forma de podcast depois de estudá-lo da forma tradicional. Há também diversos podcasts com temas não médicos, sobre atualidades, educação financeira, filosofia, história, cultura, entretenimento, e o que mais interessar. É possível ouvi-los em agregadores de podcasts ou no Spotify, ampliando a compreensão do mundo conforme se escuta.
Outra maneira de se aprimorar são os audiolivros. Eles têm sido gravados há anos, e são uma forma prática e simples de aproveitar o tempo quando se sentar com um livro não é possível. Graças a eles, as jornadas de ônibus para a faculdade nos primeiros 2 anos foram um período em que pude aproveitar para ouvir alguns livros (sofro de um terrível enjoo de movimento que me impede de ler enquanto passageiro). Nessa época, o potencial imensurável da valorização da ciência, e os riscos de sua negação iam sendo escancarados enquanto ouvia O Mundo Assombrado pelos Demônios, do astrônomo Carl Sagan de forma brilhante e distinta à apresentada nas aulas de metodologia científica. Existem vários portais que disponibilizam audiolivros, como o Audible, o TocaLivros, e o LibriVox, que disponibiliza gratuitamente os audiolivros de textos de domínio público para quem quiser ouvir.
Outro aspecto, cada vez mais fundamental para a práxis de qualidade, embora contraintuitivo, é o de instruir-se mais sobre assuntos não médicos, e uma forma muito eficiente de alcançar isto, é através da leitura. A ideia de ler como instrumento formativo é uma constante em qualquer discurso que remotamente aborde o tópico de educação, e na educação médica não é diferente: Ao longo da graduação, além do conhecimento médico cobrado, por diversas vezes é enfatizada a importância da ampliação de conceitos de outras áreas, de forma a expandir as referências culturais.
Aprender com livros o conhecimento que ultrapassa a Medicina é uma experiência fantástica, que carrega lições de comunicação, pensamento crítico, domínio emocional, e a tão citada empatia. A título de exemplo, ao ler o livro Vendo Vozes, do neurologista Oliver Sacks, sobre o universo dos surdos, o fascínio não está exclusivamente nos estudos sobre o quanto o desenvolvimento da linguagem é fundamental para existir o pensar subjetivo e o concatenar de ideias, ou nas peculiaridades da afasia em quem se comunica usando língua de sinais. O fascínio está também na imersão inédita em uma realidade desconhecida, nas facetas culturais de uma comunidade menosprezada, e na complexidade de uma forma de se comunicar estigmatizada, que é inconcebível para quem não indaga sobre o que está além da sala de aula. Isto dificilmente seria abordado, com a profundidade do livro, em uma aula sobre a fisiologia da audição, ou sobre a própria surdez.
A empatia transcende, amplia e complementa o conhecimento técnico aprendido na formação. No livro O Demônio do Meio-dia: uma anatomia da depressão, de Andrew Solomon, o fato de ele ser um jornalista, e não um profissional da área, fez com que sua abordagem focasse na experiência da depressão, e não nos critérios do DSM-5 e abordagens mecanicistas da doença, permitindo que uma perspectiva fosse aprendida enquanto eu o lia, e ilustrando, com uma clareza dolorosa, conceitos, intangíveis nas aulas, sobre o quão debilitante a doença pode ser.
Esse potencial que os livros carregam não é exclusivo dos que abordam assuntos médicos: No clássico A Morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói, é possível encontrar uma miríade de lições sobre a terminalidade da vida, traçar paralelos com temas atuais da bioética como a distanásia, e o poder dos cuidados paliativos. É um poder inerente à literatura. De maneira similar à que o conhecimento médico – adquirido das mais diversas formas – enriquece o exercício da Medicina, a profundidade e a maturidade da compreensão de mundo que podem ser adquiridas com a leitura, lapidam a prática médica desde as relações com o paciente, até as nuances interpretativas da fisiopatologia das doenças.
A realidade em que somos inseridos tem sido modificada rápida e inexoravelmente, e a nossa capacidade de adaptação diante das mudanças influenciará diretamente a prática médica. Se o conhecimento liberta, não é razoável que o ato de conhecer seja limitado às formas restritas. Gostaria de ser atendido pelo médico que não sabe apenas de Medicina, pelo médico que sabe aprender, e que sabe encontrar e qualificar uma evidência. Não obstante isso, não há por que pensar que salas de aula e livros-texto devam ser queimados e substituídos por fones de ouvido reproduzindo podcasts e audiolivros, o caso é apenas que não há sentido em descartar outras possibilidades de aprender do dia a dia de um profissional que tem um dever, tão quantioso em sua ocupação, de sempre persistir aprendendo.”