O cuidar para o curar no exercício da Medicina é tema da entrevista com o catedrático em Bioética, Dr. José Eduardo de Siqueira, publicada no Jornal da AML de dezembro 2019.
TEMPO DE TRAVESSIA
“[…] não podemos mais usar a mesma roupa de sempre, que está plasmada em nosso corpo. Temos que mudar e olhar que há possibilidade de tomarmos um outro caminho e que não somos obrigados a ficar presos a essa linguagem distante e fria”.
Versos do poeta Fernando Pessoa são usados pelo médico e educador Dr. José Eduardo Siqueira para ilustrar a missão e a principal meta da Comissão de Humanidades Médicas do Conselho Federal de Medicina para as atuais e heterogêneas 357 escolas médicas brasileiras: resgatar e fazer prevalecer o princípio de humanidade na medicina, ensinando ao aluno como olhar, ouvir e acolher o paciente como sua primeira fonte de informação, para que a formação médica possa ir além do conhecimento técnico, científico.
“O currículo médico é extremamente denso, formado quase que essencialmente por disciplinas técnicas. E apesar da recente obrigatoriedade de carga horária para a ética e a bioética na grade curricular, o que buscamos é incluir, na transversalidade e ao longo de todo o período do curso de graduação, outras disciplinas que reforçam a formação humanística do médico. E que nada mais é do que promover e/ou estimular o seu conhecimento em filosofia, artes, teatro, cinema, música, literatura…”.
Segundo Dr. Siqueira, esta formação mais ampla dos médicos – que pode ser iniciada ou conduzida em qualquer tempo da carreira dos que já exercem a profissão – torna-os aptos a melhor entender os pacientes e a sociedade em sua integralidade. “São campos do conhecimento que valorizam o potencial humano e podem contribuir para o aperfeiçoamento do agir do médico, trazendo impacto positivo na sua relação com o paciente”, reforça.
Mas apesar dos avanços já alcançados com a implantação no final dos anos 1990 do PBL (o ensino baseado em problemas) nos cursos de Medicina – “o que consideramos como sendo o primeiro passo dado para o resgate humanístico da medicina, pois os estudantes são incentivados a estudar o caso de uma pessoa, a conhecer e discutir o problema daquela pessoa em particular a partir de seus conhecimentos prévios e das informações do paciente e/ou de seu prontuário” – ainda estamos, de acordo com Dr. José Eduardo em tempo de travessia.
“Em razão do número elevado de cursos e da formação heterogênea de nossas escolas médicas, e da grandeza das pesquisas e dos avanços tecnológicos para diagnósticos, mas que nem sempre são usados como um complemento ao conhecimento médico-técnico, lamentavelmente ainda formamos médicos para tratar de doenças, não para cuidar de pessoas que ficam doentes. Por isso digo que ainda estamos em tempo de travessia, e em um patamar ainda insólito no que diz respeito a princípios e valores humanos e humanísticos da medicina: ouvir, olhar e saber enxergar o paciente como pessoa integral, como um ser humano biográfico”.
MUDANÇA DE PARADIGMA – “Precisamos convencer nossos estudantes de que é impossível conhecer a parte sem conhecer o todo. Convencê-los de que antes de serem especialistas, precisam ser médicos e, antes disso, cidadãos”, diz Dr. José Eduardo de Siqueira, enfatizando que a formação médica brasileira precisa mudar o paradigma do curar para o de cuidar.
De acordo com médico bioeticista e educador, a fronteira da medicina hoje são os Cuidados Paliativos e também por isso a ênfase da Comissão de Humanidades Médicas do CFM é sobre o modo humanístico de ensinar a medicina, discutindo ações e práticas a serem desenvolvidas nas escolas médicas brasileiras.
“O século 20 trouxe a evolução científica e o fascínio pela tecnologia, mas como muito bem citado na Declaração de São Paulo (resultado do VII Congresso Brasileiro de Humanidades Médicas promovido pelo CFM e realizado nos dias 25 e 26 de julho de 2019, em São Paulo), o cuidado integral, que pressupõe a percepção do ser humano e suas múltiplas expressões, é uma necessidade epistemológica com decisivas implicações terapêuticas”. Ou seja, a formação humanística do médico contribui para a convergência essencial entre os princípios fundamentais da medicina e o novo paradigma científico, lançando uma visão mais abrangente e profunda sobre doença e saúde, morte e vida.
“Pesquisas confiáveis demonstram que, diante do ensino linear, unidimensional, reducionista e exclusivamente técnico das ciências médicas, sucede um abandono gradativo do olhar respeitoso, do espírito altruísta e da atitude de cuidado amoroso com o outro. As Humanidades, inspirando métodos transdisciplinares, integrando intuição, emoção, sentimento, pensamento, propondo práticas que associem ao rigor científico necessário a criatividade e a imaginação, podem provocar o recrudescimento profundo da fraternidade e da solidariedade”, finaliza Dr. Siqueira, fazendo referência ao Artigo 3º da Declaração de São Paulo.
Médico, professor, escritor e Cidadão Honorário de Londrina, Dr. José Eduardo de Siqueira é nascido na capital paulista e formado médico pela PUC de São Paulo em 1967. O residente em Clínica Médica pelo Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo, entre 1968 e 1970, especializou-se em Literatura (1975) e em Cardiologia (1976), concluiu doutorado em Medicina e Ciências da Saúde em 1974 na UEL, e o mestrado em Bioética pela Universidade do Chile em 1998. Aposentado da universidade onde foi docente de 1970 a 2009, em 2011 integrou o grupo que concebeu o curso de Medicina da PUC PR-Campus Londrina. Desde então – e depois de passar pela coordenadoria do curso – é docente da instituição. Atualmente, como professor do curso de Mestrado em Bioética.
Como acadêmico, estudioso e escritor, sua jornada editorial tem igualmente a Bioética como tema central. Tanto nas três publicações impressas – Revista Virtual de Bioética Latinoamericana, Revista Brasileira de Bioética e Revista da Associação Médica Brasileira (Bioethikós) – como no blog Humanos, plataforma da Comissão de Humanidades Médicas do Conselho Federal de Medicina, lançada em comemoração ao Dia do Médico em 2018, e da qual Dr. José Eduardo é membro e um dos assíduos colaboradores.
Somando-se, e em paralelo a uma carreira de muitos títulos, prêmios e publicações científicas, o médico e educador que foi presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (2005 a 2007) e membro do Conselho Nacional de Saúde, é assessor da Redbioética/Unesco para a América Latina e Caribe, membro da International Association of Bioethics, membro titular da Academia Paranaense de Medicina e uma das grandes referências quando o tema discorre sobre Humanidades Médicas. Em especial, sobre os muitos desafios para a Bioética na formação do médico no Brasil.