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Tempo de Travessia
Carreira
“[...] não podemos mais usar a mesma roupa da grandeza das pesquisas e dos
de sempre, que está plasmada em nosso cor- avanços tecnológicos para diag-
po. Temos que mudar e olhar que há possibi- nósticos, mas que nem sempre
lidade de tomarmos um outro caminho e que são usados como um comple-
não somos obrigados a ficar presos a essa mento ao conhecimento médico-
linguagem distante e fria”. -técnico, lamentavelmente ainda
Versos do poeta Fernando Pessoa são usados formamos médicos para tratar
pelo médico e educador Dr. José Eduardo Siquei- de doenças, não para cuidar de
ra para ilustrar a missão e a principal meta da pessoas que ficam doentes. Por
Comissão de Humanidades Médicas do Conselho isso digo que ainda estamos em
Federal de Medicina para as atuais e heterogêne- tempo de travessia, e em um
as 357 escolas médicas brasileiras: resgatar e fazer patamar ainda insólito no que
prevalecer o princípio de humanidade na medicina, diz respeito a princípios e valo-
ensinando ao aluno como olhar, ouvir e acolher o res humanos e humanísticos da
paciente como sua primeira fonte de informação, medicina: ouvir, olhar e saber
para que a formação médica possa ir além do co- enxergar o paciente como pes-
nhecimento técnico, científico. soa integral, como um ser hu-
“O currículo médico é extremamente denso, for- mano biográfico”. Dr. José Eduardo de Siqueira
mado quase que essencialmente por disciplinas
técnicas. E apesar da recente obrigatoriedade de
carga horária para a ética e a bioética na grade cur-
ricular, o que buscamos é incluir, na transversalida- MUDANÇA DE PARADIGMA
de e ao longo de todo o período do curso de gradu-
ação, outras disciplinas que reforçam a formação
humanística do médico. E que nada mais é do que “Precisamos convencer nossos estudantes de que é impossível conhecer a parte sem co-
promover e/ou estimular o seu conhecimento em nhecer o todo. Convencê-los de que antes de serem especialistas, precisam ser médicos e,
filosofia, artes, teatro, cinema, música, literatura...”. antes disso, cidadãos”, diz Dr. José Eduardo de Siqueira, enfatizando que a formação médica
Segundo Dr. Siqueira, esta formação mais ampla brasileira precisa mudar o paradigma do curar para o de cuidar.
dos médicos – que pode ser iniciada ou conduzida De acordo com médico bioeticista e educador, a fronteira da medicina hoje são os Cuidados
em qualquer tempo da carreira dos que já exercem Paliativos e também por isso a ênfase da Comissão de Humanidades Médicas do CFM é sobre
a profissão – torna-os aptos a melhor entender os o modo humanístico de ensinar a medicina, discutindo ações e práticas a serem desenvolvi-
pacientes e a sociedade em sua integralidade. “São das nas escolas médicas brasileiras.
campos do conhecimento que valorizam o poten- “O século 20 trouxe a evolução científica e o fascínio pela tecnologia, mas como muito bem
cial humano e podem contribuir para o aperfeiçoa- citado na Declaração de São Paulo (resultado do VII Congresso Brasileiro de Humanidades
mento do agir do médico, trazendo impacto positi- Médicas promovido pelo CFM e realizado nos dias 25 e 26 de julho de 2019, em São Paulo), o
vo na sua relação com o paciente”, reforça. cuidado integral, que pressupõe a percepção do ser humano e suas múltiplas expressões, é
Mas apesar dos avanços já alcançados com a im- uma necessidade epistemológica com decisivas implicações terapêuticas”.
plantação no final dos anos 1990 do PBL (o ensino Ou seja, a formação humanística do médico contribui para a convergência essencial entre os
baseado em problemas) nos cursos de Medicina – princípios fundamentais da medicina e o novo paradigma científico, lançando uma visão mais
“o que consideramos como sendo o primeiro passo abrangente e profunda sobre doença e saúde, morte e vida.
dado para o resgate humanístico da medicina, pois “Pesquisas confiáveis demonstram que, diante do ensino linear, unidimensional, reducionis-
os estudantes são incentivados a estudar o caso de ta e exclusivamente técnico das ciências médicas, sucede um abandono gradativo do olhar
uma pessoa, a conhecer e discutir o problema da- respeitoso, do espírito altruísta e da atitude de cuidado amoroso com o outro. As Huma-
quela pessoa em particular a partir de seus conhe- nidades, inspirando métodos transdisciplinares, integrando intuição, emoção, sentimento,
cimentos prévios e das informações do paciente e/ pensamento, propondo práticas que associem ao rigor científico necessário a criatividade e a
ou de seu prontuário” – ainda estamos, de acordo imaginação, podem provocar o recrudescimento profundo da fraternidade e da solidarieda-
com Dr. José Eduardo em tempo de travessia. de”, finaliza Dr. Siqueira, fazendo referência ao Artigo 3º da Declaração de São Paulo.
“Em razão do número elevado de cursos e da for-
mação heterogênea de nossas escolas médicas, e